20 novembro, 2008
BLINDNESS
O CEGO É O LOBO DO CEGO
Por WELLINGTON MACHADO DE CARVALHO
28/10/2008
Há no filme Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles - baseado no romance homônimo do português José Saramago -, várias interpretações sobre a metáfora proposta. Escrever alegoricamente é a especialidade de Saramago. A maioria de suas obras são também ensaios metafóricos sobre os (pressupostos) disparates da sociedade na qual vivemos: o consumismo, o individualismo, os excessos do capitalismo. Diante da complexidade de qualquer adaptação literária para o cinema, a tarefa de Meirelles mostrou-se corajosa.
Muitos acharam o filme complexo, mas a história é linear e simples. Em uma cidade qualquer, aparentemente bem-sucedida economicamente (carros reluzentes, apartamentos modernos), pessoas começam a ficar cegas inexplicavelmente. Uma cegueira branca. As autoridades sanitárias, diante do desconhecimento científico das causas da epidemia, resolvem isolar essas pessoas em um galpão sujo e abandonado. Há pessoas de todo tipo: um médico, uma criança, um ladrão, idosos. Só uma pessoa não é acometida pela moléstia: a mulher do médico – que consegue se infiltrar entre os cegos para proteger seu marido. Simples assim.
Há pelo menos dois aspectos a se analisar: (1) a cegueira em si e (2) a condição das próprias pessoas enquanto cegas. Quem conhece um pouco da obra de Saramago deduz que a tal cegueira (1) é uma metáfora da condição humana contemporânea, uma certa impotência dos indivíduos diante da supremacia do econômico sobre o político. Não temos, individualmente, muito o que fazer. O Estado não é mais soberano, pois depende do fluxo financeiro mundial. Se não podemos agir politicamente, estamos cegos perante o complicado linguajar das transações econômicas intercontinentais.
A cegueira também pode sugerir uma “desfocalização” de alguns indivíduos – ou sociedades -, perdidos em meio à voracidade capitalista, à exagerada exaltação tecnológica e à globalização. São cegos os que rejeitam esse caminho ou os alienados. Como não há outro caminho a ser seguido, qualquer resistência é vista como anacrônica: são cegos os que perderam o bonde da história do dinamismo social. Há nessa tese, portanto, um flerte com o “Mito da Caverna”, de Platão. Saramago volta ao tema em outro livro não menos importante: A Caverna (2000).
Mas… não seria a cegueira uma punição? Um castigo ao desprezo de uma minoria abastada (os cegos) pelo bem-estar coletivo? Os cegos, neste caso, não seriam a “vingança” de Saramago? Há de se considerar que Saramago é um humanista, um crítico ferrenho do neoliberalismo - grosso modo, os ricos ficam mais ricos e estão se lixando para os pobres. Ideologias à parte, tudo o que foi pensado até aqui não é evidenciado no filme de Meirelles. Conhecer a obra de Saramago amplia imensamente a percepção do ponto de vista do diretor.
Mas o melhor do filme está por vir. O que até então era especulação filosófica torna-se evidência: a condição (2) das pessoas enquanto cegas. A alegoria neste momento muda de foco. Os cegos são alojados em um galpão enorme (uma “cidade”). Há crianças, velhos, negros, orientais, gente de todo lugar (globalização). Com o aumento da quantidade de cegos começa a faltar comida. Formam-se, então, dois grupos (“classes sociais”), onde os “mais fortes” – que detêm o controle da comida - começam a fazer exigências materiais aos “mais fracos” em troca de alimento. As autoridades, impotentes em detectar as causas científicas da moléstia, evacuam a cidade e recolhem os soldados que faziam a guarda do galpão de cegos (“Estado ausente”). Findos os objetos, os “mais fortes” exigem as mulheres do outro grupo (sexo como moeda). Há revolta e guerra na “cidade”. Algo nos remete ao “homem lobo do homem” de Hobbes?
O maior mérito de Fernando Meirelles, além de conseguir narrar equilibradamente uma história com tantos elementos, foi captar no livro os principais momentos da falência, da perversidade humana, e transformar isso em estética. A fotografia esbranquiçada, um olho-mágico visto pelo lado de fora, mulheres caminhando atrás de um vidro fosco a caminho do estupro, a trilha sonora enxuta. Tudo comprova o domínio de Meirelles sobre recursos de que dispõe e seu arsenal criativo. Com uma leitura cuidadosa do livro de Saramago cria-se um “filme mental” bem próximo do que o que Meirelles fez.
Há uma corrente que insiste em partir para a ideologização do filme, amparada no fato de Saramago ser “de esquerda” – se é que isso ainda existe. Diante de todos os problemas da contemporaneidade (pedofilia, poluição, violência, drogas, egoísmo etc.), ter um contraponto como Saramago (livro) ou Meirelles (filme) é bom para estimular o debate.
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