18 novembro, 2008

VICKY CRISTINA BARCELONA


ENTRE A VONTADE E O DESEJO

Por LUIZ FERNANDO GALLEGO
14/11/2008

(Texto escrito durante o Festival do Rio 2008)

A voz em off de um narrador em tom “indiferente” (quase como em alguns muito antigos cinejornais) lembra bastante o recurso usado por Truffaut em Jules e Jim, assim como uma breve tomada em traveling sobre três personagens passeando de bicicleta: aqui, duas mulheres e um homem – embora as combinações bem variadas incluam outro casal, formando uma ciranda amorosa/sexual (‘La ronde’?) que tanto pode remeter a Truffaut como a algo de Eric Rohmer – só que um Rohmer bem mais engraçado e menos blasé.

Vicky Cristina Barcelona faz rir como há tempos não se ria tão bem em comédias de Woody Allen, mas tal como nos cineastas franceses que ele certamente cultua, o sabor doceamargo se faz presente na discussão entre desejo (”que não tem descanso nem nunca terá”) e – digamos – vontade (aqui entendida como escolha racional e lógica).

É impressionante a habilidade do roteiro que propicia a encenação de situações cômicas sobre questões “sérias” – especialmente para a personagem de ‘Vicky’, muito bem defendida por Rebecca Hall que consegue evitar o estereótipo de “moça certinha” confrontada com a sedução da transgressão.

Já Scarlett Johansson segue a máxima de Oscar Wilde: “Posso resistir a tudo, menos às tentações”. No caso, a tentação/transgressão das moças está encarnada em Javier Barden que consegue o tom exato para que seu personagem tenha aspectos “caricaturais sutis” – se é possível tal oxímoro na linguagem; mas o paradoxo é plenamente possível na interpretação inspirada do ator. Já Penélope Cruz é toda garra e destempero na personagem mais histriônica de todas. Quando ela roda a baiana em espanhol Barden quase cria um bordão ao repreendê-la a todo momento dizendo “Speak in English, Maria Elena!”.

Este clima mais ibérico-passional (com uma pitada de Almodóvar) se apresenta bem diverso nos papéis menores de Chris Messina – que evita o clichê “yuppie” para o noivo tradicional de ‘Vicky’ - e de Patrícia Clarkson, emprestando a habitual eficiência de sua persona com ares bovaristas de meia-idade. Ou seja, um elenco que faz jus aos personagens e situações espertas do enredo.

Há muitos anos, quando Woody Allen era mais conhecido no Brasil como apenas um “tipo” cômico, até quase apenas em filmes dirigidos por terceiros (mesmo que com história escrita por ele, caso de Sonhos de um Sedutor), estávamos longe de imaginar o cineasta importante em que ele se transformaria. Depois de chamar atenção como diretor de comédias, o grande salto veio com Annie Hall (Noivo Neurótico, Noiva Nervosa), para muitos, ainda sua obra mais signifcativa. Na época, este resenhista pensou entrever algo truffautiano no filme que recebeu Oscars de destaque, mas o prestígio conseguido permitiu a Allen a liberdade de mostrar suas grandes preferências por Bergman (Interiores, A Outra, o subestimado Setembro) e Fellini (Stardust Memories como um semi-8 ½, Era do Rádio como seu Amarcord e Simplesmente Alice como sua Julieta dos espíritos).

Poucas vezes depois de Annie Hall Allen mereceria admiração praticamente unânime como se deu com Hannah e suas Irmãs, que também equilibrava leveza aparente com densidade - sem precisar ser apenas “dramático”. Talvez Vicky Cristina Barcelona, ao emular Truffaut, confirme o que se deixava entrever em Annie Hall e faça desta nova experiência de Allen um filme que fique como um dos bem equilibrados entre humor e seriedade em sua carreira.

Destaca-se ainda a fotografia do sempre competente Javier Aguirresarobe (de Mar Adentro, Fantasmas de Goya, Os Outros, Fale com Ela, etc), tanto nos interiores como nos exteriores de Barcelona e Oviedo, cidades onde se passa o filme em um verão que parece não ter fim.

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